quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Pensando sobre a Sociologia da Violência | Thiago Mansur

SOCIOLOGIA DA VIOLÊNCIA
De Thiago Sandrini Mansur

Quatro conclusões sobre a “acumulação social” da violência na sociedade brasileira: uma reflexão sobre a sociologia de Michel Misse.

1ª Conclusão: A violência é produto de relações sociais concretas construídas historicamente. Isso significa dizer que a acumulação social da violência é um processo heterogêneo e não-linear; é a partir das transformações históricas, ora com suas rupturas ora com suas continuidades, que a violência adquire forma. Acredito que a evidência disso é a ênfase investida pelo sociólogo Michel Misse (2006) em questões como: (a) “as tradições do banditismo urbano no Rio”: se fica claro que não há identidade entre as figuras do malandro, do marginal e do vagabundo, também se percebe que entre um e outros existem certas semelhanças, como se, apesar da descontinuidade, o “imaginário social” fizesse com que a fronteira entre eles fosse suavizada. Não há identidade nem continuidade entre as maltas de capoeiras e os malandros, do mesmo modo entre estes e a figura do marginal, por exemplo. Cada contexto histórico forma suas próprias figuras. (b) Em conseqüência dessa questão, há diferenças entre os modos de expressão da violência e da criminalidade nos distintos momentos históricos. Dessa forma, o autor mostra inúmeras divergências entre, por um lado, o modo de funcionamento do jogo do bicho e das mercadorias políticas que lhe eram correlatas e, por outro, constituição do “movimento” do tráfico de drogas. Apesar disso, Misse (2006) não nega que, em certos momentos, houvesse convergência entre ambos, como na questão da busca pela delimitação de territórios. Assim, “banqueiros” do jogo do bicho e “gerentes” do tráfico buscavam, cada um à sua maneira e de acordo com seu contexto histórico, delimitar seus espaços (territórios) de atuação. Misse também mostra diferenças entre a constituição do tráfico da maconha e o da cocaína. A formação das redes de tráfico de cocaína – cuja demanda foi produzida a partir da fixação de alguns portos brasileiros como rota internacional de drogas, a partir das décadas de 1970 e 1980 – utilizou como base as redes de movimento da maconha, já constituídas há pelo menos meio século antes. Entretanto, o significado social dessas redes de movimento foi tomando sentidos diferentes ao longo da história.
2ª Conclusão: A violência é vista sob o aspecto econômico-político. A violência, portanto, está intimamente relacionada com as formas de dominação produzidas/reproduzidas historicamente pelas relações sociais concretas. Daí o motivo do autor pensar a violência como uma mercadoria política, melhor dizendo, a violência como prática de dominação que engendra valiosos mercados – o mercado da segurança privada formal e informal, legal e ilegal, por exemplo. Forma-se uma verdadeira prática de gestão das relações sociais através da violência. A partir do que o autor propõe em seu texto, concluímos que não se trata somente de uma economia de mercado, há que se pensar, também, em uma economia subjetiva, isto é, que os indivíduos produzam e reproduzam cotidianamente a violência em suas relações em sociedade. Desse modo, o autor forja o conceito de mercadoria política para explicar a constituição da violência nas relações. Entendo por mercadoria todo produto do trabalho humano realizado em uma sociedade cujo valor pode ser comparado e trocado por um outro trabalho humano, diferente deste primeiro. Um casaco é uma mercadoria, pois é produto do trabalho humano, assim como a proteção, seja formal ou informal, lícita ou ilícita (fornecida pelo Estado, por traficantes ou por uma milícia armada). Com relação ao termo ‘político’, Misse faz questão de salientar que usa tal acepção no sentido amplo de relações de força e poder. Portanto, a mercadoria política seria assim definida pelo autor:
Há um mercado informal cujas trocas combinam especificamente dimensões políticas e econômicas, de tal modo que um recurso (ou um custo) político seja metamorfoseado em valor de troca. O preço das mercadorias (bens ou serviços) desse mercado, por ganhar a autonomia de uma negociação política, passa a depender não apenas das leis de mercado, mas de avaliações estratégicas de poder, de recurso potencial à violência e de equilíbrio de forças, isto é, de avaliações estritamente políticas. Para distinguir a oferta e demanda desses bens e serviços daqueles cujo preço depende fundamentalmente do princípio de mercado, proponho chama-los de ‘mercadorias políticas’ (Misse, 2006, p. 206).

E mais adiante, o autor conclui sendo enfático ao afirmar que toda mercadoria política produz um jogo de dominação:
Proponho, em resumo, chamar de ‘mercadoria política’ toda a mercadoria que combine custos e recursos políticos (expropriados ou não do Estado) para produzir um valor-de-troca político ou econômico (Misse, 2006, p. 209).

3ª Conclusão: O significado da expressão “acumulação social da violência”. Conforme discutido na primeira conclusão a violência não é algo que surge do nada, ao contrário, ela é produto das relações sociais concretas. De acordo com a segunda conclusão, as relações são concretas porque são produzidas historicamente por indivíduos em sociedade: seja ao longo do desenvolvimento histórico, seja em uma época determinada. Há uma acumulação social da violência porque ela é produzida e reproduzida historicamente pelas relações entre os indivíduos em sociedade. Isso mostra o quanto o fenômeno da violência e da criminalidade não é natural, pondo-se em questão sua banalização. Embora a violência permeie, em maior ou menor grau, o desenvolvimento histórico de todas as sociedades, esta relação se constitui com suas particularidades em cada época determinada e em cada sociedade específica. Isto significa dizer que o que determinada sociedade chama de violência não está desvinculado das condições materiais de sua existência.
4ª Conclusão: Trata-se de desterritorializar a violência, isto é, retirar seu lócus da favela ou de determinados bairros/regiões da cidade. Como na música da banda carioca O Rappa:
“O gueto também ilude e seduz com o poder da cocaína,
Que comanda o sucesso nas bocas-de-fumo da esquina,
Mas a favela não é mãe de toda dúvida letal,
Talvez seja de maneira mais direta e radical,
O sol que assola esses jardins suspensos da má distribuição...”
(Catequese do Medo, O Rappa, 1994)

A violência é analisada por sua capacidade de disseminação pelo tecido social, não se concentrando apenas nas favelas (e guetos). Se, por um lado, Misse aponta que a constituição das redes de tráfico de drogas se dá principalmente nas favelas e conjuntos habitacionais do Rio de Janeiro, por outro, ele também evidencia que a criminalidade e a violência não se restringem a essas regiões. Desse modo, a circulação de mercadorias políticas (de proteção e segurança, por exemplo) que alimentam e reproduzem a violência não se situa nas favelas e bairros de periferia. De acordo com essa lógica, há que se pensar nas situações em que os agentes do Estado se apropriam ilegalmente de recursos políticos monopolizados pelo Estado visando à obtenção de vantagens particulares e nos crimes do colarinho branco. Além disso, mesmo nos momentos onde o Estado atua como órgão perpetrador de violência com amparo legal, em minha opinião, ela nunca é legítima. Não se trata somente de pensar a violência como sendo possível de ser localizada em algum lugar ou algum sujeito. Por mais que o indivíduo seja aquele que incorpora a violência através de seus atos e por mais que o índice de homicídios (por exemplo) esteja apontando para um determinado bairro ou região, eles são apenas expressões de relações de dominação, não são fatos. Nesse sentido, penso que os indivíduos não detêm a violência e aplicam-lhe sobre os outros, que seriam suas vítimas; os indivíduos são produtos de relações sociais permeadas e constituídas historicamente pela e na violência. A vítima nasce junto com o algoz.

Referências Bibliográficas
BARROS, Regina Duarte Benevides de; RAUTER, Cristina; PASSOS, Eduardo. Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: IFB/Te Cora, 2002.
CHAUÍ, Marilena. Ética e violência. Revista Teoria em Debate, São Paulo, n. 39, outubro/dezembro 1998. Disponível em http://www2.fpa.org.br/portal. Acesso em 26/10/2007.
___________. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2003.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUSS, R. ; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
___________. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MISSE, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo. 2006. pp. 137-300.
YUKA, Marcelo. Catequese do medo. In: O Rappa. O Rappa. Rio de Janeiro: Warner Music, 1994. 1 CD, faixa 1. Produção: Fábio Henrique.
WIEVIORKA, M. Para compreender a violência: a hipótese do sujeito. In: WIEVIORKA, M. Em que mundo viveremos. São Paulo: Perspectiva, 2006, pp. 201-223.

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