segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Seminário Mundo Vix | UFES

As inscrições para a participação no Seminário MundoVix se encontram abertas no site do evento:
http://www.vitoria.es.gov.br/hot-sites/mundovix/inscricoes.asp


A Universidade Federal do Espírito Santo, a Rede Universidade Nômade e a Prefeitura Municipal de Vitória convidam-no para participar do Seminário Mundo Vix, a ser realizado nos dias 10 a 12 de dezembro, no auditório Manoel Vereza, no CCJE/UFES e no Teatro Universitário:


MUNDO-VIX
A POLÍTICA DO COMUM: Cidades, Democracia e Globalização
10,11 e 12 de dezembro de 2008
Auditório Manoel Vereza/CCJE e Teatro Universitário
O evento é gratuito e aberto.

Organização:
Departamento de Comunicação Social – UFES
Laboratório de Território e Comunicação - UFRJ
Universidade Nômade
Prefeitura Municipal de Vitória

Coordenação Geral: Giuseppe Cocco Coordenação Técnica: Fábio Malini e Gerardo Silva

PROGRAMAÇÃO

Dia 10


15:00 Abertura Oficial – Auditório Manoel Vereza – CCJE/UFES

A Política do Comum: Cidades, Democracia e Trabalho
A proposta do Seminário Mundo Vix é de pensar os desafios globais a partir de uma realidade municipal e, vice versa, pensar o governo municipal a partir desses desafios globais. O desafio é exaltado pela crise terminal do neoliberalismo e o horizonte de incertezas que se abre. A transformação da crise implica na inovação política da discussão sobre as novas dimensões do trabalho, as lutas e as instituições do comum.

João Coser – Prefeito Municipal de Vitória-ES
Rubens Rasseli – Reitor da UFES

Giuseppe Cocco, UFRJ
Fábio Malini, UFES


16:00 a 19:00 – Auditório Manoel Vereza - CCJE

O trabalho da metrópole: redes de cooperação e precariedade
Se o modo de regulação neoliberal do regime de acumulação que caracteriza o capitalismo cognitivo acaba de desmoronar, as transformações estruturais do trabalho que o caracterizam são irreversíveis. Elas dizem respeito à difusão social nas redes metropolitanas de um trabalho que implica na produção de formas de vida por meio de formas de vida e em um regime de controle que passa pela sua sistemática precarização.

Yann Moulier Boutang: Universidade Tecnológica de Compiègne(França)
Paulo Henrique de Almeida: – UFBa

Debatedor: Giuseppe Cocco – Universidade Nômade e UFRJ
Moderação: Vinicius Wu – Chefe de Gabinete da Secretaria de Reforma do Judiciário.


Dia 11

10:00 a 13:00 - Auditório Manoel Vereza - CCJE

Novos governos e movimentos na América Latina
A América do Sul é atravessada por um ciclo político incomparavelmente aberto aos processos de democratização. Em praticamente todos os países encontramos experiências de governo que são a expressão, pelo menos parcial, da critica social ao neoliberalismo e representam tentativas inovadoras de equacionar o quebra-cabeça da exclusão social e o do crescimento econômico. O que as primeiras edições do Fórum Social Mundial afirmavam com força como horizonte aberto de possibilidades aparece hoje em dia como um terreno concreto de inovação política e institucional. Outros mundos são possíveis e essa potencialidade está sendo experimentada na América Latina.

Raul Prada – Grupo Comuna - Bolívia
César Altamira – Universidade Nômade – Argentina
Oscar Vega – Grupo Comuna- Bolívia

Debatedor: Alexandre Mendes – Universidade Nômade - UERJ
Moderador: Henrique Antoun - ECO/UFRJ

PAUSA ALMOÇO

14:30 a 17:30 - Auditório Manoel Vereza - CCJE

O devir-Mundo do Brasil: Mestiçagem, migrações, racismo
Os temas do combate ao racismo, das migrações e da mestiçagem atravessam os movimentos e marcam novos tipos de conflitos dentro da globalização. Nos Estados Unidos, o movimento dos migrantes ilegais constituiu um dos elementos mais importantes das lutas depois de Seattle, em 1999. A revolta das periferias na França mostrou que o centro é atravessado pelos movimentos da periferia. Nesse novo contexto, o Brasil– com suas dinâmicas mestiças - pode constituir-se em um terreno de inovação social e política.

Giuseppe Cocco –UFRJ
Alexandre do Nascimento – Universidade Nômade, Pré Vestibular para Negros e Carentes / RJ
Leonora Corsini – Universidade Nômade

Debatedor: Ivana Bentes – UFRJ
Moderação : Caia Fittipaldi – Universidade Nômade


18:30 - Auditório Manoel Vereza - CCJE

Conferência 2 : A Metrópole e o Comum
No capitalismo contemporâneo, o novo espaço produtivo é a metrópole e suas redes de trabalho difuso. As dinâmicas metropolitanas misturam produção e reprodução e tem em seu cerne a constituição de formas de vida. A Cidade se constitui, nesse sentido, no terreno privilegiado para pensar a relação nova entre lutas e produção, as condições materiais da construção de um Comum que permita aos fragmentos de se recompor em redes de cooperação, de "fazer multidão".

Michael Hardt – Universidade de Duke – Estados Unidos
Joaquin Herrera Flores – Universidad Pablo Olavide, Sevilla - Espanha

Debatedor: Gerardo Silva – UFRJ


Dia 12

10:00 a 13:00 – TEATRO UNIVERSITÁRIO

As Instituições do Comum na Globalização
A América do Sul é o teatro de um ciclo político virtuoso e diversificado que deu materialidade à palavra de ordem do Fórum Social Mundial de Porto Alegre: "um outro mundo é possível" ! A partir de uma grande diversidade de experiências de movimento e governo, as esquerdas sul-americanas se aventuraram na experimentação institucional de radicalização democrática e na reabertura do debate sobre um horizonte não apenas pós-neoliberal, mas também pós-capitalista.

Antonio Negri – Filósofo – Universidade Nômade – Itália
Álvaro Linera – Vice-Presidente da Bolívia

Moderação : Alberto Kopittke : Assessor Parlamentar

PAUSA ALMOÇO

15:00 – - Auditório Manoel Vereza - CCJE

A Crise Financeira Global
Crise do capitalismo financeiro ou crise do capitalismo contemporâneo tout court? De maneira paradoxal, as teses que separam o capitalismo em duas dimensões, uma que seria "real" diante de uma que seria "fictícia" encontram dificuldades a apreender a crise atual. É a economia como um todo que é abalada e o que está em crise é o regime de acumulação, quer dizer de exploração, de um capitalismo que se valoriza pela captura das formas de vida.

Christian Marazzi – Scuola Professionale - Suíça
Debatedor: Antonio Martins – Le Monde Diplomatique

terça-feira, 18 de novembro de 2008

A Imanência: uma vida... | Giles Deleuze

GILLES DELEUZE
A IMANÊNCIA: UMA VIDA...
O que é um campo transcendental? Ele se distingue da experiência, na medida em que não remete a um objeto nem pertence a um sujeito (representação empírica). Ele se apresenta, pois, como pura corrente de consciência a-subjetiva, consciência pré-reflexiva impessoal, duração qualitativa da consciência sem um eu [moi]. Pode parecer curioso que o transcendental se defina por tais dados imediatos: falaremos de empirismo transcendental, em oposição a tudo que faz o mundo do sujeito e do objeto. Há qualquer coisa de selvagem e de potente num tal empirismo transcendental. Não se trata, obviamente, do elemento da sensação (empirismo simples), pois a sensação não é mais que um corte na corrente da consciência absoluta. Trata-se, antes, por mais próximas que sejam duas sensações, da passagem de uma à outra como devir, como aumento ou diminuição de potência (quantidade virtual). Será necessário, como conseqüência, definir o campo transcendental pela pura consciência imediata sem objeto nem eu [moi], enquanto movimento que não começa nem termina? (Até mesmo a concepção espinosista dessa passagem ou da quantidade de potência faz apelo à consciência).
Mas a relação do campo transcendental com a consciência é uma relação tão-somente de direito. A consciência só se torna um fato se um sujeito é produzido ao mesmo tempo que seu objeto, todos fora do campo e aparecendo como “transcendentes”. Ao contrário, na medida em que a consciência atravessa o campo transcendental a uma velocidade infinita, em toda parte difusa, não há nada que possa revelá-la. Ela não se exprime, na verdade, a não ser ao se refletir sobre um sujeito que a remete a objetos. É por isso que o campo transcendental não pode ser definido por sua consciência, a qual lhe é, no entanto, co-extensiva – mas ela subtrai-se a qualquer revelação.
O transcendente não é o transcendental. Na ausência de consciência, o campo transcendental se definiria como um puro plano de imanência, já que ele escapa à toda transcendência, tanto do sujeito quanto do objeto. A imanência absoluta é em si-mesma: ela não existe em alguma coisa, para alguma coisa, ela não depende de um objeto e não pertence a um sujeito. Em Espinosa, a imanência não existe para a substância, mas a substância e os modos existem na imanência. Quando o sujeito e o objeto, que caem fora do campo de imanência, são tomados como sujeito universal ou objeto qualquer aos quais a imanência é, ela própria, atribuída, trata-se de toda uma desnaturação do transcendental que não faz mais do que reduplicar o empírico (como em Kant), e de uma deformação da imanência que se encontra, então, contida no transcendente. A imanência não está relacionada a Alguma Coisa como unidade superior a toda coisa, nem a um Sujeito como ato que opera a síntese das coisas: é quando a imanência não é mais imanência para um outro que não seja ela mesma que se pode falar de um plano de imanência. Assim como o campo transcendental não se define pela consciência, o plano de imanência não se define por um Sujeito ou um Objeto capazes de o conter.
Diremos da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada diferente disso. Ela não é imanência para a vida, mas o imanente que não existe em nada é, ele próprio, uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência completa, beatitude completa. É na medida em que ele ultrapassa as aporias do sujeito e do objeto que Fichte, em sua última filosofia, apresenta o campo transcendental como uma vida, que não depende de um Ser e não está submetido a um Ato: consciência imediata absoluta, cuja atividade mesma não remete mais a um ser, mas não cessa de se situar em uma vida. O campo transcendental torna-se então um verdadeiro plano de imanência que re-introduz o espinosismo no mais profundo da operação filosófica. Não é uma aventura semelhante que sobrevém a Maine de Biran, em sua “última filosofia” (aquela que ele estava demasiadamente fatigado para levar a bom termo), quando ele descobria, sob a transcendência do esforço, uma vida imanente absoluta? O campo transcendental se define por um plano de imanência, e o plano de imanência por uma vida.
O que é a imanência? uma vida... Ninguém melhor que Dickens narrou o que é uma vida, ao tomar em consideração o artigo indefinido como índice do transcendental. Um canalha, um mau sujeito, desprezado por todos, está para morrer e eis que aqueles que cuidam dele manifestam uma espécie de solicitude, de respeito, de amor, pelo menor sinal de vida do moribundo. Todo mundo se apresta a salvá-lo, a tal ponto que no mais profundo de seu coma o homem mau sente, ele próprio, alguma coisa de doce penetrá-lo. Mas à medida que ele volta à vida, seus salvadores se tornam mais frios, e ele recobra toda sua grosseria, toda sua maldade. Entre sua vida e sua morte, há um momento que não é mais do que aquele de uma vida jogando com a morte. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, e entretanto singular, que despreende um puro acontecimento, liberado dos acidentes da vida interior e da vida exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade daquilo que acontece. “Homo tantum” do qual todo mundo se compadece e que atinge uma espécie de beatitude. Trata-se de uma heceidade, que não é mais de individuação, mas de singularização: vida de pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, uma vez que apenas
o sujeito que a encarnava no meio das coisas a fazia boa ou má. A vida de tal individualidade se apaga em favor da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome, embora ele não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida...
Não deveria ser preciso conter uma vida no simples momento em que a vida individual confronta o morto universal. Uma vida está em toda parte, em todos os momentos que tal ou qual sujeito vivo atravessa e que tais objetos vividos medem: vida imanente que transporta os acontecimentos ou singularidades que não fazem mais do que se atualizar nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não tem, ela própria, momentos, por mais próximos que sejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos. Ela não sobrevém nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio no qual vemos o acontecimento ainda por vir e já ocorrido, no absoluto de uma consciência imediata. A obra romanesca de Lernet-Holenia coloca o acontecimento em um entre-tempo que pode devorar regimentos inteiros. As singularidades ou os acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com os acidentes d’avida correspondente, mas não se agrupam nem se dividem da mesma maneira. Eles se comunicam entre eles de uma maneira completamente diferente da dos indivíduos. Parece mesmo que uma vida singular pode passar sem qualquer individualidade ou sem qualquer outro concomitante que a individualize. Por exemplo, as crianças bem pequenas se parecem todas e não têm nenhuma individualidade; mas elas têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos que não são características subjetivas. As crianças bem pequenas, em meio a todos os sofrimentos e fraquezas, são atravessadas por uma vida imanente que é pura potência, e até mesmo beatitude. Os indefinidos de uma vida perdem toda indeterminação na medida em que eles preenchem um plano de imanência ou, o que vem a dar estritamente no mesmo, constituem os elementos de um campo transcendental (a vida individual, ao contrário, continua inseparável das determinações empíricas). O indefinido como tal não assinala uma indeterminação empírica, mas uma determinação de imanência ou de uma determinabilidade transcendental. O artigo indefinido não é a indeterminação da pessoa a não ser na medida em que é a determinação do singular. O Uno não é o transcendente que pode conter mesmo a imanência, mas o imanente contido em um campo transcendental. O Uno é sempre o índice de uma multiplicidade: um acontecimento, uma singularidade, uma vida... Pode-se sempre invocar um transcendente que recai fora do plano de imanência, ou mesmo que atribui imanência a si próprio: permanece o fato de que toda transcendência se constitui unicamente na corrente de consciência imanente própria a seu plano. A transcendência é sempre um produto de imanência.
Uma vida não contém nada mais que virtuais. Ela é feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades. Aquilo que chamamos de virtual não é algo ao qual falte realidade, mas que se envolve em um processo de atualização ao seguir o plano que lhe dá sua realidade própria. O acontecimento imanente se atualiza em um estado de coisas e em um estado vivido que fazem com que ele aconteça. O plano de imanência se atualiza, ele próprio, em um Objeto e um Sujeito aos quais ele se atribui. Mas, por mais separáveis que eles sejam de sua atualização, o plano de imanência é, ele próprio, virtual, na medida em que os acontecimentos que o povoam são virtualidades. Os acontecimentos ou singularidades dão ao plano toda sua virtualidade, como o plano de imanência dá aos acontecimentos virtuais uma plena realidade. O acontecimento considerado como não-atualizado (indefinido) não carece de nada. É suficiente colocá-lo em relação com seus concomitantes: um campo transcendental, um campo de imanência, uma vida, singularidades. Uma ferida se encarna ou se atualiza em um estado de coisas e em um vivido; mas ela própria é um puro virtual sobre o plano de imanência que nos transporta em uma vida. Minha ferida existia antes de mim... Não uma transcendência da ferida como atualidade superior, mas sua imanência como virtualidade, sempre no seio de um milieu (campo ou plano). Há uma grande diferença entre os virtuais que definem a imanência do campo transcendental, e as formas possíveis que os atualizam e que os transformam em alguma coisa de transcendental.

Tradução disponível em: www.freewebtown.com
Outra tradução possível em: Vasconcellos, J., Fragoso, E. A. da R. (Org.). "Gilles Deleuze: Imagens de um filósofo da Imanência". Londrina: Ed. UEL, 1997.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Subjetividade... | Machado; Gottardi; Pinheiro

[p.1]*
SUBJETIVIDADE E PROCESSO DE CRIAÇÃO NA ESCRITA:
UM SOPRO DE VIDA [1].

Para citar este trabalho:
MACHADO, Leila Aparecida Domingues; GOTTARDI, Denise Pesca Pereira PINHEIRO, J. A. C. Subjetividade e processo de criação na escrita: um sopro de vida. In: IV Colóquio Internacional de Filosofia e Educação, 2008, Rio de Janeiro. IV Colóquio Franco-Brasileiro de Filosofia e Educação: “Filosofia, experiência, aprendizagem”. Rio de Janeiro: UERJ, 2008. v.1
Leila Aparecida Domingues Machado
Denise Pesca Pereira Gottardi
Janayna Araújo Costa Pinheiro
Universidade Federal do Espírito Santo – UFES
CAPES

RESUMO:
Na atualidade, as sociedades se constituem como grandes fábricas de subjetividade. Os fluxos da máquina capitalista nos invadem e nos corrompem incessantemente. Assumimos determinadas formas de pensar, trabalhar e escrever. A questão que aqui se coloca é que não pensamos essas formas como provisórias. Faz-se necessário avaliar nossas práticas e, nesse contexto, nossa escrita. A experiência da escrita na contemporaneidade nos convoca a pensar sobre como a produzimos, no que a mortifica e a potencializa. A escrita intimista, representativa da realidade, cópia de um mundo dado, constitui-se como dispositivo de controle que incide sobre a subjetividade, fabricando formas capturadas de escrever. Mas, em resposta, é na própria subjetividade que precisamos criar movimentos de invenção que escapem aos controles que insistem em nos cristalizar. Escrita errante, móvel, nômade, que substitui a intimidade do “eu” pela presença de um impessoal. A presente proposta de comunicação enfoca uma discussão acerca do processo de criação na escrita como meio de produção de outros modos de existência, de dissolução de formas dadas e cristalizadas, e de transformação do si e do mundo. Pensamos o ato de escrever como veículo de criação de novos modos de subjetivação, como movimento instituinte que ao se atualizar, ao configurar uma dada forma-subjetividade, concebe e pratica a vida como obra de arte. A escrita pela perspectiva analítica de Deleuze constitui-se como um caso de devir, como um processo de singularização. Pensamos a escrita como uma experiência que possa produzir disparidade nos conceitos e os jogue na imanência do que afirmam. Apostamos na escrita com uma função autopoiética, ou seja, uma escrita com função estética e política de criação de si. Não se trata de criação de “eus”, nem mesmo de demarcação de autorias, mas do encontro com a alteridade, um outramento que desmancha os modelos que reproduzimos e naturalizamos. Pelo encontro intensivo com a alteridade, uma dissonância é produzida nas referências em vigor. Porém é nesse momento que ocorre uma intensa mobilização das potências de criação e de resistência, uma necessidade de criar novos territórios e mapas, com o objetivo de dar corpo à mudança que se operou. A escrita pode dar forma a essa nova composição. Assim, pensamos o ato de escrever como um dispositivo que possa operar múltiplas resistências em detrimento da ação de reforçar os dispositivos de poder.
Palavras-chave: Escrita. Criação. Processos de Subejtivação.

[p.2]RÉSUMÉ:
Actuellement les sociétés se constituent comme de grandes fabriques de subjectivité. Les flux de la machine capitalistique nous envahissent et nous corrompent incessantement. Nous supposons certaines formes de penser, travailler et écrire. La question qu’ici se pose est que nous ne pensons pas ses formes comme provisoires. Il se fait nécessaire évaluer nos pratiques et, dans ce contexte, notre écriture. L’expérience de l’écriture, dans la vie contemporaine, nous convoque à penser comment nous la produisons, ce que la mortifie et la rend puissante. L’écriture intimiste, représentative de la réalité, copie d’un monde donnée, se constitue comme un dispositif de contrôle qui incide sur la subjectivité, fabriquant de formes capturée d’écrire. Mais, sous forme de réponse, c’est dans la propre subjectivité que nous devons crée des mouvements d’invention qui échappent aux contrôles qui insistent nous cristalliser. Ecriture errante, mobile, nomade, qui substitue l’intimité de « moi » par la présence d’un impersonnel. La présente proposition de communication focalise une discussion concernant le processus de création dans l’ecrite comme moyen de production d’autre moyen d’existence, de dissolution de formes données et cristallisés, et de transformations de soi et du monde. Nous pensons l’acte d’écrire comme véhicule de création d’un nouveau mode de subjectivation, comme mouvement instituant qu’au momment de s’actualiser, se configurer une tel forme-subjectivité, qui concoit et pratique la vie comme oeuvre d’art. L’écriture par la perspective analytique de Deleuze se constitue como un cas de devir, comme un processus de singularisation. Nous pensons à l’écriture comme une expérience qui puisse produire disparité dans les concepts et qui les jette dans l’immanence de ce qu’ils affirment. Nous parions une écriture avec une fonction autopoièse, c’est à dire, une écriture avec fonction esthétique et politique de création de soi même. Il ne sagit pas de création de « eus », ni de demarcation d’autorité mais de la rencontre intensive avec altérité, un autre qui desorganise les modèles que nous reproduisons et naturalisons. Par la rencontre intensive avec l’altérité, une dissonance est produite dans les références en vigueur. Néanmoins c'est à ce moment qui se produit une intense mobilisation des pouvoirs de création et de résistance, une nécessité de créer de nouveaux territoires et cartes, avec l'objectif de donner corps au changement qui s'est opéré. L’ écriture peut donner forme à cette nouvelle composition. Ainsi, nous pensons l'acte d'écrire comme un dispositif qui puisse opérer de multiples résistances au détriment de l'action de renforcer les dispositifs de pouvoir.
Mots clé: écriture, création, processus de subjectivation.


O que é que eu sou? sou um pensamento. Tenho em mim o sopro? tenho? mas quem é esse que tem? quem é que fala por mim? tenho um corpo e um espírito? eu sou um eu? “É exatamente isto, você é um eu”, responde-me o mundo terrivelmente” (LISPECTOR, 1978, p. 17).

Ao pensarmos em nossas vidas, em nossa singular história de vida, acreditamos na existência de um eu, de uma individualidade, algo interior, em separado do suposto exterior, o mundo. “Eu sou individual como um passaporte. Eu sou fichada no Félix Pacheco. Devo me orgulhar de pertencer ao mundo ou devo me desconsiderar por?” (LISPECTOR, 1978, p.39).
Não pensamos a nós como uma rede constituída por tudo aquilo que nos perpassa, como essa composição provisória de finitos materiais de expressão em ilimitadas combinações. Parece difícil imaginarmos nosso “eu” como algo tão incerto, provisório e instável. O medo do [p.3]desconhecido nos mantém presos a uma mesma forma da qual não estamos dispostos a abrir mão.
“Não encontro resposta: sou. É isto apenas o que me vem da vida. Mas sou o quê? a resposta é apenas: sou o quê. Embora às vezes grite: não quero mais ser eu!! mas eu me grudo a mim e inextricavelmente forma-se uma tessitura de vida” (LISPECTOR, 1998, p. 20.).

Então, o fluxo da máquina capitalista nos invade e nos corrompe incessantemente. Percorrendo tudo, todos, cada um de nós, estancando o fluxo desejante e delimitando-o na vontade de se dizer “eu”.
E se eu digo “eu” é porque não ouso dizer “tu”, ou “nós” ou “uma pessoa”. Sou obrigada à humildade de me personalizar me apequenando mas sou o és-tu. (LISPECTOR, 1998, p. 12).

A noção de subjetividade, pensada a partir da perspectiva proposta por Foucault, Guatarri e Deleuze, nos conduz ao questionamento do dualismo clássico sujeito-objeto, corpo-alma, individual-social. Esta noção aposta na idéia de que a exterioridade não está separada da interioridade, como também não faz apologia à unidade e nem à uniformidade. “Essa identidade me leva a algum caminho? Que faço de mim? Pois nenhum ato me simboliza” (LISPECTOR, 1978, p.33).
Acabamos por considerar uma dada forma-subjetividade, que é contemporânea, como algo não variável, esquecemo-nos de sua produção histórica. Ao falar de subjetividades “propomos uma distinção entre modos de subjetivação - processos de subjetivação ou modos de existência - e formas-subjetividade – enquanto aspectos presentes na constituição da subjetividade” (MACHADO, 1999, p.1, grifo do autor). Referem-se, o primeiro, ao intempestivo, ao devir, à dissolução das formas; enquanto o segundo, ao estado das coisas, às formas em si. Assim se dá um movimento que nos atravessa no dia-a-dia, no trajeto de um lugar a outro, ou ainda de um pensamento a outro. “(...) divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos (...)” [2].
A subjetividade, pensada como uma rede formada por dobras, nos fala de territórios [p.4]existenciais. As dobras[3] envolvem formas-subjetividade e modos de subjetivação que conferem sentido para o que denominamos desejo, ciência, trabalho etc. Em cada momento histórico, determinadas configurações dessa rede se fazem presentes. Assumimos, então, determinadas formas de sentir, de desejar, de viver. A questão que aqui se coloca é que não pensamos essas formas como provisórias, como passíveis de assumir outras, abertas para o desconhecido, para o imprevisível da vida. “(...) a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si (...) o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração”[4] .
Os processos de subjetivação atravessam cada um, todo mundo, toda gente, toda parte. Nesse processo, o tempo todo afetamos e somos afetados. Neles ressoam potências de vida e mortificações. No movimento entre formas-subjetividade e modos de subjetivação deslizamos entre o que faz viver e o que deixa morrer. “Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente” (LISPECTOR, 1978, p.13).
Desse modo, “precisamos experimentar uma análise do que estamos vivendo que incite a criação de soluções provisórias para o campo problemático que enfrentamos” (MACHADO, 2004a). Torna-se necessário avaliar nossas práticas e, neste contexto, nossa escrita. Se o biopoder[5] se apossa de nossas vidas, regularizando suas eventualidades, criando e recriando formas capturadas de pensar, de trabalhar, de escrever, é preciso, então, inventar outras possibilidades de pensamento, de trabalho e de escrita. “Entro lentamente na escrita (...). É um mundo emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras”[6] . “E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só corpóreo (...)”[7] . Pois quando escrevo, “escrevo muito simples e muito nu” [8].
A escrita intimista, representativa da realidade, cópia de um mundo dado, constitui-se como dispositivo de controle que incide sobre os processos de subjetivação fabricando formas [p.5]capturadas de escrever. Mas, em resposta, é no próprio processo de subjetivação que precisamos criar movimentos de invenção de escrita que escapem aos controles que insistem [insistimos] em nos cristalizar. Escrita errante, móvel, nômade, que substitui a intimidade do sujeito pelo Fora da linguagem [9].
Escrever, a exigência de escrever: não mais a escrita que sempre se pôs (por uma necessidade nada evitável) a serviço da palavra ou do pensamento dito idealista, ou seja, moralizante, mas a escrita que, por sua força própria lentamente liberada (força aleatória de ausência), parece consagrar-se apenas a si mesma, permanecendo sem identidade e, pouco a pouco, libera possibilidades totalmente diferentes, um jeito anônimo, distraído, diferido e disperso de estar em relação, um jeito por intermédio do qual tudo é questionado (...) (BLANCHOT, 2001, p.8).

O trajeto da escrita pode acontecer após a leitura de alguns textos, ao escutar uma música, ao assistir a um filme ou programa de TV, encontros que nos afetam e disparam uma ou outra idéia; dessas leituras podem emergir devaneios. Preferimos chamá-los devaneios, pois não se organizam como o “eu” gostaria. As idéias não saem prontas para formar um texto como estabelecido: com início, meio e fim. “(...) não começa pelo princípio, começa pelo meio, começa pelo instante de hoje” [10]. Esse vago pensamento não se apreende, surge como um sopro, como uma brisa ou uma ventania, um movimento intenso que nos afeta. As leituras que assim experimentamos agem com violência, nos tocam e produzem estranhamento e, então, se dá um encontro que nos força a pensar. Pois como afirma Deleuze (1987), pensar é sempre decifrar um signo, implica uma violência no pensamento, algo que o tira de seu natural estupor, das possibilidades abstratas. Mas é preciso predispor-se ao seu encontro, expor-se à sua violência. “(...) como escrever de tal maneira que a continuidade do movimento da escrita possa deixar intervir fundamentalmente a interrupção como sentido e a ruptura como forma?”[11] . Essa postura, sempre política, constitui-se como resistência, como a criação de uma linha de fuga nesse processo de escrita capturado – representativo e reprodutivo.
Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras – e é novo para mim o que escrevo (...). Lê então o meu invento de pura vibração sem significado senão o de cada esfuziante sílaba. (LISPECTOR, 1978, p.10-11).

[p.6]Segundo Deleuze (1997), escrever é um caso de devir, é um processo, uma possibilidade de singularidade no mais alto grau. Não é impor uma forma a uma matéria vivida, mas extravasar o vivido. Escrever não é contar as próprias lembranças, os sonhos, é descobrir sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que não é generalidade, mas singularidade[12]. A escrita só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer “eu”. “Não se escreve com as próprias neuroses” [13].
Não é confortável o que te escrevo. Não faço confidências (...). E não te sou e me sou confortável; minha palavra estala no espaço do dia (LISPECTOR, 1998, p.16).

Eu me ultrapasso abdicando de mim e então sou o mundo: sigo a voz do mundo, eu mesma de súbito com voz única. O mundo: um emaranhado de fios telegráficos em eriçamento (LISPECTOR, 1998, p.23).

Através da escrita torna-se possível traçar uma língua estrangeira, um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior. A escrita, portanto, pode ser concebida como esse lócus de produção, de criação. Utilizá-la como meio apenas de reprodução é fazê-la abandonar todo papel criador. “A escrita pode ter uma função autopoiética, ou melhor, uma função estética e política de criação de si” (MACHADO, 2004b)[14] e do mundo. Não se trata de criação de “eus”, mas de se mostrar um anonimato, um impessoal em meio aos eus, criando, assim, uma abertura, uma produção de diferenças, um desmanchar de modelos dados, reproduzidos e naturalizados. O desafio se constitui como um convite à transformação de si em meio à própria escrita. “Uma escrita que possa produzir disparidades nos conceitos, que os jogue na própria imanência do que afirmam” [15].
Ao escrevê-lo não me conheço, eu me esqueço de mim. Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é autobiográfico (...). Nunca te disse e nunca te direi quem sou. Eu sou vós mesmos (LISPECTOR, 1978, p.19).

Eu e objeto / eu objeto / objeto eu / linha que inscreve / linha de contorno / sobre o mesmo plano / mundo, vida, discurso / dizível, indizível, visível, invisível / ferramentas que constituem o contorno / o desenho de uma cena / embaralham-se as linhas / outra cena. Uma seqüência de palavras que produzem um movimento onde o “eu” e o “objeto” se fundem e se distanciam pela linha do desenho da escrita. E não definem nem um e nem outro (nem [p.7]desenho nem escrita). E não tornam um e outro, como num somatório. O encontro constitui uma cena, que não se refere a um ou ao outro, antes forja uma outra via, engendra uma alteridade [16]. Ao debruçar-se sobre o papel em branco, ou sobre a tela branca do computador, como deixar emergir em nós esse terceiro? Como deslizar entre as linhas de força que nos atravessam e destituir-se do poder de dizer “eu”? “Construo algo isento de mim e de ti” (LISPECTOR, 1998, p.16).
Os processos de subjetivação são composições que criamos a partir do que vivemos em nosso cotidiano[17] . Pensar a escrita é pensar como, cada um de nós, em cada ato, pode fazer funcionar dispositivos atrelados a linhas duras, sedentárias, de conformação e captura, bem como, a linhas de resistência, a linhas de fuga, a linhas que criem fissuras em meio aos regimes de dominação a partir das composições que se fazem. “Estou caindo no discurso? Que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar” [18].
Criar linhas de resistência é criar “imprevisibilidades no que parecia previsível, incertezas no que parecia certo, possibilidades no que parecia impossível, fugas no que estava capturado” (MACHADO, 2008b). É estar “fora de nossos interesses particulares, de nossas certezas”. É estar aberto ao indeterminável, ao indizível, ao impensado. É preciso estar disponível ao encontro com o inesperado, com o intempestivo. É produzir através da escrita, dessa potência de transformação de si e do mundo, linhas de resistência, criação de outras possibilidades de escrita, outras possibilidades de vida. É fazer da escrita um processo de singularização, um encontro com a alteridade, um outramento.
Se na multidão, o ser é de fuga, é que o fato de pertencer à fuga faz do ser uma multidão, uma multiplicidade impessoal, uma não-presença sem sujeito: o eu único que sou dá lugar a uma indefinição paradoxalmente sempre crescente que me carrega e me dissolve na fuga (BLANCHOT, 2001, p. 57).

É preciso resistir a dizer “eu”, tentar mais de uma vez, cansar os olhos em frente à tela do computador, refazer as palavras, insistir no devaneio.
O principal a que eu quero chegar é surpreender-me a mim mesmo com o que escrevo. Ser tomado de assalto: estremecer diante do que nunca foi dito por mim (LISPECTOR, 1978, p. 70).

[p.8]Após o impacto da página em branco e uma aparente morte súbita do devaneio, a folha se deixa deslizar pelo olhar, as palavras vibram para traçar um desenho. Um sentido se delineia. Entre uma e outra palavra pode pulsar um desejo de se soltarem, de se expandirem em meio à potência de criação. Empurrarem-se para prosseguir um trajeto aleatório sobre a página, produzir conexões, rachaduras, misturas, hibridismos, distanciamentos. “Quando eu escrevo, misturo uma tinta e outra, e nasce uma nova cor” (LISPECTOR, 1978, p.69).
Por esse encontro intensivo com a alteridade, uma dissonância pode ser produzida nas referências em vigor: desmorona-se um território. Porém é nesse momento que ocorre uma intensa mobilização das potências de criação e de resistência, uma “necessidade de criar novos territórios e mapas, com o objetivo de dar corpo à mudança que se operou no corpo vibrátil [19]” (ROLNIK, 2003, p.19).
Cada palavra, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda a minha palavra tem um coração onde circula sangue (LISPECTOR, 1978, p. 16).

O devaneio escapou pelos dedos agitando uma vibração entre as palavras ousando ocupar as páginas em branco. Pausa na escrita e volta-se ao início do texto, o olho percorre as linhas e tenta acompanhar o movimento das palavras no papel. Tenta, pois as palavras ainda pulsam, e para não deixar escapar a idéia, lê novamente.
Estou consciente de que tudo o que sei não posso dizer, só sei pintando ou pronunciando silabas cegas de sentido. E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração última. (LISPECTOR, 1998, p. 11).

Dar corpo a essas mudanças constitui-se mesmo como o ato de criar. Pensar a criação como essa produção de diferença, corporificação no visível das diferenças que vão se engendrando no invisível (ROLNIK, 1992). A escrita dá forma a essa composição, a esse outro modo de existência que vai ganhando contornos. O ato de escrever se torna, então, veículo de criação de outros modos de subjetivação, movimento instituinte que ao se atualizar, ao configurar uma dada forma-subjetividade, infla de vida as páginas em branco forçando em nossa existência a experiência de uma vida como obra de arte.
Eu sou o atrás do pensamento. Escrevo no estado de sonolência, apenas um leve contato do que estou vivendo em mim mesma e também uma vida inter-relacional. Ajo como uma sonâmbula. No dia seguinte não [p.9]reconheço o que escrevi. Só reconheço a própria caligrafia. E acho certo encanto na liberdade das frases, sem ligar muito para uma aparente desconexão (LISPECTOR, 1978, p 70).

O instante em que somos tomados pelo ‘sonambulismo’ acontece num tempo e espaço que não controlamos. Muitas vezes, não nos deixamos ser tomados pela velocidade do devaneio, mas pela velocidade da máquina capitalista. O tempo do devaneio não segue a cronologia do relógio. Ele escapa por entre os dedos, como esse presente[20] . “O que falo é puro presente (...). é sempre atual (...) mesmo que eu diga ‘vivi’ ou ‘viverei’ é presente porque eu os digo já[21]
O olhar re-visita o texto sem que tenha o dever de reconhecer nas palavras um sentido prévio, para então ler. “Nada é mais doloroso, angustiante, do que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos” (DELEUZE, 1992, p. 259).
A escrita exige de nós um ‘jorrar do tempo’ (PELBART, 1993). Um tempo que não temos. No entanto, não interessa libertar-se do tempo, mas liberá-lo (PELBART, 1993). Procuramos, aqui, andar na contra-mão do capitalismo e das exigências do saber/conhecimento. Para escrever é preciso entrar na velocidade do pensamento, deixar que o devaneio tome corpo. Entretanto, como pensar essa escrita como uma potência e não torná-la parte dos dispositivos de dominação/captura? Os encontros produzidos nesse processo não são bons nem maus em si, mas disparadores de potências. “E quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já”[22] .
Neste momento, pensando o ato de escrever como um dispositivo que pode operar múltiplas resistências em lugar da ação de reforçar os dispositivos de poder, indaga-se: Que possíveis temos criado para a escrita, para a vida? Que escolhas temos feito? Nossa escrita reforça e reproduz o instituído, ou realiza um movimento de produção de novos modos de se estar no mundo, um movimento instituinte? Afinal, por meio da escrita, o “que estamos ajudando a fazer de nós mesmos” [23]? “(...) estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra”[24] . Palavra que “(...) não se apresenta [p.10]mais como uma palavra, mas como uma visão liberta das limitações da visão. Não uma maneira de dizer, mas uma maneira transcendente de ver” [25].
Na perspectiva de Foucault, os exercícios de poder que circulam e que produzem formas capturadas de escrever não operam prioritariamente por repressão, ao contrário, justamente para que se mantenham e sejam aceitos, os exercícios de poder, exercidos por cada um de nós, produzem, criam escritas. Configuram-se como uma rede produtiva que percorre e transversaliza todo o corpo social, muito mais que uma instância negativa que tem por função reprimir. Assim, fazem funcionar de forma naturalizada normas referentes a padrões de escrita, criando formas e fôrmas para a mesma. “Que mal porém tem eu me afastar da lógica? (...) Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais”[26] .
É preciso pensar a escrita como um veículo que faz circular essa produção, como um dispositivo que alimenta (ou não) essa engrenagem. Essa produção em meio à escrita pode estar ligada a sistemas de poder que a produzem e a apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem, circularmente. Esse regime de produção capturado é condição de formação e desenvolvimento do sistema capitalista. “Eu queria iniciar uma experiência e não apenas ser vítima de uma experiência não autorizada por mim, apenas acontecida” [27].
Acreditamos, assim, que apostar em novas produções subjetivas em meio à escrita faz parte de uma militância micropolítica. O processo de criação na escrita faz parte de uma constituição ético-estético-política de nós mesmos. Cabe-nos, portanto, avaliar se ativas e produtoras de outros modos de vida ou se reativas e reprodutoras das forças do capital.
Escrever, então, passa a ser uma responsabilidade terrível. Invisivelmente, a escrita é convocada a desfazer o discurso no qual, por mais infelizes que nos acreditemos, mantemo-nos, nós que dele dispomos, confortavelmente instalados. Escrever desse ponto de vista, é a maior violência que existe, pois transgride e Lei, toda lei e sua própria lei (BLANCHOT, 2001, p.9).


NOTAS:
[1] LISPECTOR, Clarice, 1978. Título da obra: “Um sopro de vida”.
[2] LISPECTOR, 1998, p.10.
[3] As dobras constituem formas provisórias, “como um lenço que rola na areia e vai formando desenhos variados ao sabor do vento” (...) “Uma espécie de um dentro que não é fechado e que continua sendo parte de um fora-rede” (MACHADO, 1999, p.212).
[4] LISPECTOR, 1998, p.9-10.
[5] “Foucault distingue duas formas de ação sobre a vida e sobre a morte: o poder soberano e o poder de regulamentação ou biopoder” (MACHADO, 2008). O biopoder é um poder que visa controlar a vida das multidões, criando formas de viver. Controlar a vida seria “tomar posse dela; regularizando seus acidentes; criar e recriar formas cotidianas de pensar, de trabalhar, de falar, de ver, de amar, enfim, formas de viver que equilibrem os riscos” (MACHADO, 2004).
[6] LISPECTOR, 1998, p.14.
[7] Ibid, p.11.
[8] LISPECTOR, 1978, p.14.
[9] O conceito de Fora foi criado por Maurice Blanchot a fim de problematizar o processo de escrita. Desconstrói a idéia de literatura como representativa do mundo e propõe que a literatura seja a instauração de novos mundos. Cf. GIROTTO, Nara Lúcia. Blanchot, Foucault e Deleuze: convergências entre a palavra literária, a experiência do Fora e o impensado. Disponível em: http://www.unisc.br/cursos/pos_graduacao/mestrado/letras/anais_2coloquio/convergencias_palavra_literaria.pdf. Acesso em: 03 abr 2008.
[10] LISPECTOR, 1978, p.25.
[11] BLANCHOT, 2001, p. 37.
[12] A singularidade é aqui pensada como “processo de singularização”. Segundo Guattari e Rolnik (1986) o que caracteriza um processo de singularização “é que ele seja automodelador. Isto é, que ele capte os elementos da situação, que construa seus próprios tipos de referências práticas e teóricas, sem ficar nessa posição constante de dependência em relação ao poder global (...)”.
[13] DELEUZE, 1997, p. 13.
[14] Cf. a noção de si em MACHADO (1999, p.150) nota de rodapé.
[15] MACHADO, 2004b.
[16] A alteridade é aqui entendida como dimensão na qual se opera uma permanente produção de diferença. O efeito disso é uma complexificação cada vez maior do mundo (ROLNIK, 1992).
[17] MACHADO, 2008a.
[18] LISPECTOR, 1978, p.20.
[19] Segundo Rolnik (2006, p.31) o corpo vibrátil é “(...) todo aquele seu corpo que alcança o invisível. Corpo sensível aos efeitos dos encontros dos corpos e suas reações (...)”.
[20] Peter Pál Pelbart (1993, p. 35) cita Oury para explicar dois tipos de tempo existentes no grego antigo, o aion, que é esse presente que faz jorrar de dentro de si o tempo, e o kairos, que é o momento adequado, o bom momento para decidir e fazer.
[21] LISPECTOR, 1998, p.17.
[22] Ibid, p.9.
[23] ORLANDI, 2002.
[24] LISPECTOR, 1998, p.12.
[25] BLANCHOT, 2001, p. 68.
[26] Ibid, p. 13.
[27] LISPECTOR, 1978, p.18.


[p.11]REFERÊNCIAS:
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita / Maurice Blanchot; tradução: Aurélio Guerra Neto. – São Paulo: Escuta, 2001.
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[*paginação]